Meus pensamentos sobre Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
Eu perdi poucas pessoas próximas de mim ao longo da minha vida, o que é bom. Mas perder minha avó no começo desse ano foi algo quase inédito, e ainda é cedo pra sequer estar perto de processar tudo que senti desde então. Ainda me pego pensando em diversas coisas relacionadas à forma como as coisas aconteceram, e certas lembranças me fazem chorar muito.
Processar essa perda é um processo certamente não-delimitado. Não dá pra saber quando vai ter fim (provavelmente nunca) e não dá pra me cobrar uma reação que eu nem sei se já tive um dia. Mas de vez em quando surge alguma coisa que ajuda a processar e entender. Essa coisa pra mim foi o livro Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, do Mia Couto.
Antes de ler, vi algumas recomendações para não começar por este livro porque ele é um pouco confuso. Logo que comecei até concordei com isso, mas não tinha referência pois nunca tinha lido Mia Couto. Segui mesmo assim, pois não é exatamente difícil. Talvez eu só tenha deixado de interpretar uma simbologia ou outra. Mas a ideia aqui não é falar sobre a história em si.
Me identifiquei com diversos aspectos do narrador e personagem principal, o Marianinho. Ele retorna à sua terra natal para o velório do avô, e se vê no centro de umas coisas estranhas e assuntos não resolvidos. Pela ordem normal das coisas (e até “esperada”), avô e avó são as primeiras pessoas que vamos perder mesmo. Mas nada nos prepara para os ritos associados com a ocasião do velório e as coisas que vêm depois.
Nos quartos, nos corredores, nas traseiras se aglomeram rostos que, na maior parte, desconheço. Me olham, em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me. Pois eu, na circunstância, sou um aparente parente. Só o luto nos faz da mesma família.
Acontece que eu também não visitava a minha avó há muito tempo, talvez uns 4 meses na ocasião. E não sou particularmente próximo dos tios e agregados daquele lado da família. Tive o mesmo sentimento de não pertencer, de ser praticamente um estranho lá.
Em um certo ponto da história, o avô já falecido diz ao neto:
Não acredita como me cansava aquela sala, como me fatigavam os visitantes que não paravam de chegar, fingindo tristezas. Onde estavam quando eu ainda era todo vivo e careci de amparo? Por que se juntaram agora, em mostruário de choros e rezas?
Acho que é uma experiência um pouco “universal” sobre a morte, né? Sempre surgem os afastados meio perdidos e sem graça, sempre teve alguém que foi quem mais ajudou em vida. Sempre tem aqueles abusados, folgados e pilantras querendo algo.
Pra mim, a única coisa que resta pra fazer mesmo é processar um pouco desse arrependimento de ter estado tão distante e ficado tanto tempo sem ver a vó. E no final das contas ter gratidão por tudo que aprendi e vivi, e cultivar com o máximo de carinho possível as boas lembranças.
Surpreendo a Avó na cozinha, em preparo de refeição. Pela janela escuto sua lengalenga, monotónica. A Avó sempre recitava enquanto preparava a comida.
Um dos trechos que me fez chorar horrores. Minha vozinha também cantava e cantarolava muito enquanto cozinhava.
Eu acabei perdendo a conexão com a simbologia do livro lá pro final, e realmente vou ficar devendo uma interpretação melhor de outros aspectos do livro. Mas por uma parte, ao menos, pude pensar que meus sentimentos estavam sendo ouvidos e compreendidos em um nível bem intenso e complexo. E o processo certamente ficou um pouquinho mais leve.
Enfim, de minha alma restou o quê? Um amontoado de saudades. Minha alma é um ferro-velho, na sucata do mecânico João Celestioso. A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem.
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